(Conexão Sul 2013) Dia 2 – Cachoeira do Amâncio a Nova Trento


A chuva que caía fina no final da madrugada nos mostrava que, mais uma vez, a previsão do tempo mostrou-se equivocada. Seria o segundo dia de pedalada ao sol conforme os mais requisitados sites de meteorologia do Brasil e de Santa Catarina. Entretanto, os pingos batendo nas barracas indicava-nos o contrário. A chuva seguia fina, quase parando, no horário de levantar.

Eu não dormira bem. Fui um dos inúmeros que acordou com a chuva, mas o que me incomodava realmente era o solo sobre o qual me apoiava. Raízes e pedras fizeram-me perceber o avançar da idade. Um avançar que o arquiteto e urbanista Antônio Miranda não notara em meu rosto apenas dois dias antes. Incólume, o tempo mostra suas marcas, mesmo que seja no natural ato de dormir.

O café da manhã foi coletivo, com duas fatias de pão com doce e queijo para cada, meia rodela de abacaxi, e banana e laranja à vontade. O chá, de junco, erva baleira e manjericão, também estava liberado, com água tirada do próprio rio que corria ao nosso lado. As cascas do abacaxi misturadas à infusão, coada numa trombeta de flor, davam um gostinho especial à bebida.

O combinado era a saída às 7h30, mas esse horário acabou sendo ultrapassado. Minha barraca já estava pronta às 7h13, com a ajuda do Michael e do João. Não é fácil montar e desmontar uma barraca para até 4 pessoas sozinho, mas é o único abrigo móvel que possuo.

Não estava acreditando que, naquela situação de autoconhecimento e interação com a natureza, não iriam as pessoas conhecer o objetivo de nosso desvio de percurso de 6km: a Cachoeira do Amâncio. Eu estivera lá no dia anterior e fui uma das 6 pessoas a admirá-la. Naquela manhã chuviscosa, o Tomás também estivera frente à cascata, aproveitando-se da máxima de que é ajudado quem cedo madruga.

Mesmo com pouco tempo disponível, chamei a Patrícia e lá fomos nós tirar fotos da queda d´água. Não havia ainda entre nós nenhuma imagem da cachoeira. À falta de visibilidade a partir do acampamento unia-se o fato de que todos os que foram no dia anterior haviam percorrido, literalmente, o leito do rio.

Cruzamos uma pequena ilhota até chegar a uma trilha mal demarcada que fava na cachoeira. Momento de contemplação sublime! E, claro, de inúmeros cliques. A cascata estava com maior volume em relação ao dia anterior. Eu, por minha vez, estava com enorme vontade de mergulhar novamente. Almejo não realizado.

Fizemos um caminho novo para retornar ao acampamento, por uma trilha mais larga a partir do local onde, na véspera, notara muito lixo. É um caminho muito mais fácil e rápido para ser feito. No percurso, orquídea, bromélia e bananeirinha-do-mato chamaram-nos mais a atenção.

Já passara das 7h30. Havia um grupo ainda no acampamento, consertando pneu furado. No alto da estrada que margeia o riacho, todos os demais ciclistas. Uns brincavam de escalada no paredão de terra, outros só aguardavam-nos, com certa impaciência. Culpa das picadas de insetos.

Descemos a mesma estrada que subimos no dia anterior. Chegamos ainda a tempo da missa na igreja católica de Sorocaba de Dentro. Bois de grande porte e um casal de corujas ficaram para fora da cerimônia sagrada. Nós também. Passamos reto também pela Festa da Piava, que no final do dia soubemos ser um pequeno peixe, um lambari. Pelo resgate a uma tradição de Biguaçu que se perdia com o tempo, duas bandas tocariam, e a piava era liberada.

Um dos rios próximos, talvez cheio de piavas, mostrava uma bela paisagem, com uma coluna de grandes árvores frondosas, com um destacado verde, um vermelho e um amarelo em plantas contíguas. Outro trecho interessante, logo à frente, foi uma alameda no meio da estrada de terra, com árvores de vários metros circundando um trecho curto, de um lado palmeiras e, de outro, eucaliptos. Seguindo adiante, o revoar de aves sobre uma aparente rizicultura foi um show à parte, com dezenas, talvez centenas, de seres alados, sobrevoando em conformações variadas.

A existência de um mercado era sempre marcada por festa de alguns ciclistas. Era o local e o horário para se abastecer e adquirir mantimentos para o final do dia e a manhã seguinte. E assim, muito se movimentou a economia da região com o nosso simples traslado.

Um motódromo em Biguaçu também chama a atenção, principalmente devido ao elevado número de motocicletas que passaram pela gente em ambos os dias da viagem. O curioso é que existem muitos motociclistas que dirigem sem capacete, ou transportando a família inteira na garupa, nessas estradas vicinais. Parece mesmo um sítio provinciano, onde as leis da civilização ainda não chegaram ou sequer fazem falta.

Em Canelinha, diversas edificações históricas estão em bom estado de conservação. Edificações com baixo e médio relevo, bem ornadas ou nem tanto, algumas com lambrequim, todas ao dispor de nossos olhos, mas não muito aproveitados por aqui. Condição não muito diferente de São João Batista.

Infelizmente, ao mesmo tempo em que aproveito o ambiente natural e construído, também exijo demais de minha bicicleta. Assim como ocorreu no Pedal da Mari, entre Itajaí, Camboriú, Balneário Camboriú e Itapema, perdi minha marcha dianteira mais leve. Um problema crônico cuja bicicletaria que frequento tem tido bastante dificuldade em solucionar, por enjambre ou, como neste caso, por falta de peça para troca. A partir de São João Batista, praticamente não mais usei a marcha mais leve de minha bicicleta, independente do porte do morro ou aclive.

Se a passagem por São João Batista ficou marcada pela divisão das pessoas ao comer, nas quais umas foram em restaurante e outras comprar os ingredientes no mercado Koch, recém-inaugurado, um fato mais marcante ainda deu o tom para a nossa viagem: a partida de duas amigas. A Patrícia e a Vivi, esta última a garota do jogo da feira travado na véspera, resolveram voltar de ônibus para Florianópolis a partir da cidade.

Sobre o Koch, conta-se num jornal que ele foi aberto no dia 7, uma quinta-feira, quatro dias antes do dia que vos relato. Dizem que a promoção de 50% na inauguração logo esvaziou as prateleiras do mercado. Mas tivemos um azar: nosso requeijão estava fermentado e tivemos que trocar. Estavam comigo no mercado o André “Mentira”, o Rodrigo Timm, a Sabrina, o Michael, o Lucas e a Julia Simon.

Eu fui com a Vivi e a Pati até a rodoviária enquanto os demais giravam para o destino do dia, Nova Trento. Não conheceram eles a cidade. As garotas e eu rodamos um pouco pelo centro histórico de São João. Impressionante é a Igreja Matriz, do santo que nomeia a cidade, mas ainda mais impressionante é a ocupação das praças públicas.

Skatistas dominaram o coreto da praça em frente à prefeitura. Nela, bancos estrategicamente posicionados entre os canteiros circundavam seu centro, permitindo descanso e entretenimento às pessoas que lá sentavam. Já o largo da matriz é fantástico. Se as mesas de xadrez estavam vazias, uma bola voava em meio a um parquinho infantil e, nós três, discorríamos sobre a vida ao lado de nossas bikes. De um lado, o rio, de outro a Igreja e, sobre nossas cabeças, a copa de uma árvore.

Uma indagação interessante foi sobre as onipresentes cores vermelha, branca e azul, que coloriam todos os postes da cidade. Pelo que disseram era uma homenagem à colonização francesa no atual pólo calçadista catarinense! Parece pouco provável, pois a origem do município é de imigrantes italianos, chegando, inclusive, a chamar-se Nova Itália. Como diria um colega meu: “Edsi averigualis”.

O centro de São João Batista possui poucas ruas asfaltadas. O pavimento mais comum são as lajotas, o que torna mais confortável o pedalar no espaço dos pedestres, as calçadas. Em muitas ruas, os passeios são melhores do que o leito carroçável e há ainda a presença de faixas elevadas (lombofaixas) em cruzamentos. Situações de uma cidade voltada para as pessoas em um município de pouco mais de 25.000 habitantes.

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Não consegui convencer as garotas a continuarem mais um dia com a gente e fui em um ritmo confortável até Nova Trento, sozinho. Rapidamente, tirei a desvantagem em relação a meus colegas e, 40min após minha despedida da Vivi e da Pati, estava com eles. O percurso para os próximos dias fora modificado. O caminho que fora escolhido por ser menos íngreme foi substituído pelo mais curto, direto, pela Estrada do Padre. Nela, as elevações da Escarpa Geral começam mais cedo. Uns 50km mais cedo, com a altimetria indicando maior subida acumulada. De certa forma, devido aos problemas com a minha bicicleta e seu câmbio mais leve, essa mudança de roteiro praticamente mina qualquer chance de eu os acompanhar nos últimos dias. Ainda assim, vou com eles.

A câmera fotográfica sem bateria não registrava mais os encantos de Nova Trento. O bondinho? Não o vi. O santuário, crentes ou não crentes, os ciclistas passaram batido. As igrejas no caminho pelo bairro Lageado? Se não fosse um ponto para tirar dúvidas – e possível local de descanso – talvez nem tivesse sido notado. Mesmo vários pontos do belíssimo rio Alto Braço, um afluente do Itajaí, ou Taiá-hy, como gosta de mencionar o professor Roberto Gonçalves da Silva, passaram incólumes.

A esta altura, sabia já eu também que estava com um pneu murcho, muito provavelmente com um pequeno furo. Além da dificuldade com as subidas, teria eu também queda de rendimento na pedalada. Ainda assim, subi quase a totalidade dos morros, apenas num deles – o pior do dia – optei por mudar para a marcha mais leve na mão. Com isso, a despeito de ter torneado minhas coxas, fiquei atrás em diversos momentos.

Justamente na subida desse morro maior, existe a “bica da capela”, um conjunto de nascentes e mangueira d’água ao lado de uma imagem sacra onde os ciclistas encheram as caramanholas. Ponto natural de separação da dianteira e da traseira do grupo, em seu topo a galera que estava mais rápida desenhou uma seta para indicar o caminho a se seguir. Em geral – e assim aconteceu nas demais situações -, ficava sempre alguém (ou o grupo todo), aguardando os últimos nas bifurcações.

Armamos barraca no terreno de 1.000 metros de frente por 1.500 metros de fundo do seu Osvaldo (Valdo) e da dona Juventina, na entrada da Pitanga já quase 20h.

Recarreguei meu notebook e a bateria da câmera fotográfica. O Valdo possui diversas mudas de espécies botânicas, incluindo muitas variedades selvagens. Orgulha-se da riqueza de vida que lhe trouxeram os palmitos plantados há sete anos. Hoje, quase todo o seu terreno foi regenerado. Não é um dos pontos de mata virgem, mas está soberbamente recoberto de verde. Nova Trento é o segundo município catarinense que com maior percentual de mata virgem, só perdendo para Botuverá. O caminho que meus amigos pretendem fazer amanhã é um dos únicos percursos que atravessam a mata virgem presente entre Nova Trento, Vidal Ramos, Brusque e Botuverá.

Banhei-me no rio Alto Braço, nu, às 21h, antes de comer. Macarrão era o prato da noite, uma porção bem generosa para cada um. Uma pêra em calda, especialidade da dona Juventina, tornou mais saudável a sobremesa.

Para escovar os dentes, uma curiosidade: pó dental natural, trazido pelo Pedro e pelo Renato de Florianópolis. São dois pós, o de juá, cravo e canela, para impedir a proliferação de bactérias, e o de berinjela, sem necessidade de serem previamente umedecidos para causarem um bom efeito. Em princípio, recebe a aprovação unânime de meus dentes!

Fiquei ainda até às 0h30 conversando com o seu Valdo, na churrasqueira dele, sobre política e meio ambiente. Parece que alguns animais ditos raros podem ser relativamente comuns na região. Ele contou-me que, há uns anos, duas jaguatiricas viviam matando e comendo as galinhas dele. Aliás, as galinhas dividem com nossas barracas o pomar cheio de árvores cítricas.

Daqui, ouço o rio passar forte poucos metros abaixo e alguns animais ecoam vocalizações que não consigo distinguir. O sono bate forte. Já chuviscou, mas já parou. Só eu permaneço acordado. Apenas até agora.

Frase do dia: Em tempos de seca, meu galão primeiro.

Distância percorrida no dia: 68km.
Total acumulado: 123km.

Fabiano Faga Pacheco

Nova Trento, 11 de novembro de 2013, às 2h21.

CONEXÃO SUL 2013

Relatos

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Dia 2 – Cachoeira do Amâncio a Nova Trento
Dia 3 – Nova Trento

Fotos

Camila Claudino de Oliveira

Fabiano Faga Pacheco / Bicicleta na Rua
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João Ricardo Lazaro

Patricia Dousseau

Sobre bicicletanarua
Ciclista urbano paulistano residente em Florianópolis.

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