Uma justa homenagem

Amanhã, sábado, 19 de dezembro, ocorrerá o primeiro teste oficial do que vai se tornar o primeiro percurso de cicloturismo do Estado de São Paulo. O projeto de lei que o institui já foi aprovado na Câmara Municipal paulistana e leva o nome de Rota Cicloturística Márcia Prado.

É uma justa homenagem à cicloativista Márcia Prado, que acabou morrendo após ser atropelada por um ônibus em plena Av. Paulista em 14 de janeiro deste ano. Três dias antes, um domingo, nós e mais 16 ciclistas fizéramos grande parte do percurso dessa rota, saindo da mesma estação Grajaú da linha esmeralda da CPTM, cruzando a represa Billings de balsa duas vezes, trasladando-nos pela Ilha do Bororé, que então sentia os primeiros impactos das obras do Rodoanel e adentrando a Estrada de Manutenção (ou Estrada de Serviço da Dersa).  Ousadamente, sinalizamos suas bifurcações, seus caminhos, suas entradas e saídas principais.

Com a nova sinalização, não havia mais como se perder nas bifurcações da Estrada de Manutenção.

Apesar de a Manutenção já ter sido planejada para, no futuro, virar um atrativo cicloturístico, a previsão não se concretizara. Ciclistas, pedestres, corredores, a nenhum deles foi planejada uma maneira segura de cruzar as escarpas entre a metrópole e o mar. Enquanto as opções “peabiríticas” lhes eram fechadas, surgiam na paisagem enormes obras de aço e concreto, destinadas ao meio mais ineficiente de locomoção.

Durante a sinalização, divertiamo-nos e imaginávamo-nos no futuro. Observávamos os detalhes da Estrada de Manutenção. Devaneávamos sobre os locais onde os ciclistas poderiam fitar a paisagem, contemplando-a. Sugeríamos pontos onde poderiam ser instalados paraciclos para os viajantes fatigados recomporem seus fôlegos em meio a uma refeição.

Um mirante para contemplar-se a natureza nos arredores da metrópole.

No fundo, pensávamos que tudo o que estávamos fazendo não era ainda para ser desfrutado em nossa geração, mas sim pela de nossos filhos e netos. Pensávamos vírgula. Alguém não achava isso.

– Eu vou poder descer de bike pela Imigrantes!

Márcia dissera, com todas as letras, que ela mesma teria o gosto de ver o fruto de nosso trabalho. Quase passamos a acreditar nisso quando, ao finalizarmos a sinalização, saímos pelo último acesso à Imigrantes e tivemos a pista toda só para nós (iria começar a Operação Subida, invertendo parte do sentido do fluxo de automóveis; foi bem nessa hora que reaparecemos na Imigrantes).

Márcia Prado em local por onde passará a Rota Cicloturística Márcia Prado. É uma das últimas fotos que tenho dela.

A última lembrança que tenho dela em vida foi retratada num quadro do Marcelo Siqueira, pintado enquanto descansávamos numa praia de Santos.

Três dias depois, vi-a pela televisão, recoberta por um saco negro, desfalecida, imóvel, sem vida. Ao seu lado, a mesma bicicleta e o mesmo capacete vermelho com os quais ela pôde ter a onírica sensação de que seus desejos – os nossos desejos – fossem virar realidade.

Hoje somos mais confiantes: eles realizar-se-ão.

No asfalto: "Futuro acesso". Profecia ou não, será por aí que adentraremos a Estrada de Manutenção no NIP Bike.

Fabiano Faga Pacheco

Saiba mais:

CicloBR >> Rota Márcia Prado

Apocalipse Motorizado >> Rota Cicloturística Márcia Prado, o novo caminho do mar

Destak >> A história da Rota Márcia Prado

Clipping Rota Cicloturística Márcia Prado

(XIV) Interplanetária – “Pequenos” problemas técnicos: o pneu vegano e a Estrada de Manutenção

No Rancho da Pamonha, exaustos, paramos. Tiramos ambas rodas da minha bicicleta. O pneu dianteiro, que até então estava bom, foi para o lugar do traseiro. O André procurou por mais furos na câmara do outro pneu. Foram-se os últimos remendos.

Ciclista Fabiano.

Remendos no Rancho da Pamonha. Foto: Ciclista Fabiano.

Esperávamos poder tomar café e descansar lá no Rancho da Pamonha, mas ele só abriria às 10h30min. Limpamos um pouco nossas magrelas, sujas de terra, e apenas esperamos o policial rodoviário que fica na base da PMR improvisada em frente ao Rancho atender um viajante motorizado e seguimos para a Manutenção. Eram quase 7h.

Ciclista Fabiano.

Bicicleta enlameada. Foto: Ciclista Fabiano.

Pela contramão, seguimos no acostamento até o começo da Estrada de Manutenção, hoje sinalizada. Com facilidade e velocidade, seguimos por ela.

A Estrada de Manutenção, também conhecida pelas comunidades lindeiras como Estrada de Serviço, ou ainda como Estrada do Dersa, é percorrida todo final de semana por dezenas de cicloturistas. Um de seus começos situa-se a cerca de 2km do Rancho da Pamonha, na Imigrantes. Ela termina em uma das sedes do Parque Estadual da Serra do Mar (Núcleo Itutinga-Pilões).

O começo da Manutenção é ruim, com várias bifurcações, chão pedregoso e, até então, nenhuma sinalização. Depois vira uma estrada asfaltada, com pequenos trechos de paralelepípedos e com uma cobertura de limo em vários pontos.

Ciclista Fabiano.

Começo da Estrada de Manutenção. Foto: Ciclista Fabiano.

Pois bem, pouco antes de começar o asfalto liso, meu pneu furou mais uma vez. Era o mesmo pneu, agora na roda dianteira. Utilizamos uma câmara velha remendada que o André carregava consigo. Teria que torcer para mais nada acontecer.

Ciclista Fabiano.

Câmara furada bastante remendada. Foto: Ciclista Fabiano.

Mas realmente não era meu dia de sorte. Logo após a primeira descida vi que meus freios não estavam funcionando direito. O André deu uma ajeitada. Mais próximo do nível do mar, ficamos sabendo o que estava ocorrendo.

Acontece que meus freios estavam nas últimas. Dois deles já estavam mostrando seus suportes de ferro. Um desses ferros havia feito um corte na lateral do pneu. Por isso, a câmara furava com qualquer coisinha. O problema não era ela, era o pneu, que não estava utilizável devido às péssimas condições dos freios.

Esta era a situação em que se encontrava o melhor dos freios.

Esta era a situação em que se encontrava o melhor dos freios.

Diante dessas circunstâncias, o inevitável aconteceu. O pneu furou mais uma vez. Não me restavam mais câmaras ou remendos. Sorte foi que o André havia lido um livro sobre o que fazer nessas situações extremas. Retiramos a câmara. Pegamos folhas secas, abundantes às margens da Manutenção, e enchemos o pneu com elas. Deu certo. E pude, de fato, descer ao litoral.

Ciclista Fabiano.

Pneu Vegano. André insere folhas secas no pneu. Foto: Ciclista Fabiano.

A estrada tem apenas uma pista para subir e uma para descer, mas praticamente não circulam automóveis por ela (vimos apenas quatro). Sem contar que a velocidade máxima permitida chega a apenas 40km/h. Entretanto, o visual dela é incrível! As escarpas da Serra do Mar entrecortadas pelo concreto que sustenta as pontes da Anchieta e da Imigrantes. Ao longe, as povoações a habitar à beira do Atlântico.

Ciclista Fabiano.

Paisagem vista ao longo da Estrada de Manutenção. Foto: Ciclista Fabiano.

Ciclista Fabiano.

Estrada eleva-se por entre os morros da Serra do Mar. Foto: Ciclista Fabiano.

Volta e meia, você cruza, por baixo, as autopistas. Em um dos trechos você fica na mesma altura delas. Mas seja lá onde você estiver, a natureza estará te acompanhando.

Ciclista Fabiano.

Por sob as pontes, o verde impera. Foto: Ciclista Fabiano.

Ciclista Fabiano.

É muito mais belo pedalar-se pela Estrada de Manutenção. Foto: Ciclista Fabiano.

Do meu pneu, as folhas saíam aos poucos. Passamos a preenchê-lo com folhas verdes, em especial de helicônias e bananeiras, cujas folhas têm grande dimensão. Meu pneu esvaziava-se cada vez mais rápido. Eu já deixava até minhas espátulas nos bolsos de meu agasalho, tamanha era a freqüência com que as necessitava.

André Pasqualini.

Folhas de bananeira salvaram o dia. Foto: André Pasqualini.

Há muitas fontes de água ao longo da Manutenção. Essas fontes, bicas e cachoeiras possuem água própria para o consumo. Elas abastecem os municípios da Baixada Santista. Uma das grandes fontes de contaminação dessas águas deriva dos rituais de macumbaria, cujos vestígios podem ainda ser vistos em vários pontos da estrada.

Ciclista Fabiano.

A melhor vista da fonte d’água. Ainda assim, notam-se requícios de macumbaria. Foto: Ciclista Fabiano.

Um dos pontos pelos quais se passa, que pode até ser visto pelos motoristas ao longe, é uma fantástica e refrescante cachoeira, onde é possível até banhar-se (apesar de não ser recomendado pelo autor deste blogue).

Ciclista Fabiano.

Cachoeira ao lado da Estrada de Manutenção. Foto: Ciclista Fabiano.

Ciclista Fabiano.

Cachoeira ao lado da Estrada de Manutenção. Foto: Ciclista Fabiano.

Faltando poucos quilômetros para a saída da Imigrantes, meu pneu estava bastante deformado. Uma meia-volta na roda e o pneu – e as folhas – saía para um lado. Mais meia-volta e o resto do pneu saía para o lado oposto. Tentei pôr mais folhas, mas não adiantou. Passei algumas centenas de metros a carregar a bicicleta apenas com sua roda traseira apoiada no asfalto, empinada, conduzida por mim a pé.

Ciclista Fabiano.

Não era possível nem completar uma volta na roda sem que o pneu saísse. Foto: Ciclista Fabiano.

O André estava na minha frente. Ele chegou na sede do Parque Estadual da Serra do Mar, onde foi proibido de passar (leia o relato dele) e retornou, terminando por me encontrar.

Ele colocou folhas de bananeira para preencher todo o pneu. Não deu certo. Enquanto colocávamos mais folhas, quem nós encontramos? O Nicolas! Francês residente em São Paulo, ele estivera na Interplanetária. Voltara com um grupo pela Imigrantes, mas não agüentou. Enfiou-se no mato, próximo à represa, jantou num tipo de Pesque & Pague e dormira lá perto (leia o relato dele, em francês). Junto dele estava um rapaz que viera de Araraquara para descer ao litoral. Ele estava num grupo de uns 40 ciclistas. Estes vieram de ônibus até o Rancho da Pamonha. De lá, foram pelo acostamento na contramão até a Manutenção. Ele quisera ir um pouco mais rápido que os demais.

A idéia que este ciclista de Araraquara teve foi improvisar um manchão com uma das câmaras usadas. Primeiro, retiramos todas as folhas do pneu. Depois, com um remendo que me foi cedido, arrumamos uma das câmaras furadas. Outra câmara foi cortada. Inflou-se um pouco a câmara recém-remendada e ajeitou-se no pneu. Nos pontos críticos, como onde o freio fizera um rasgo e onde havia calombos, envolveu-se a câmara com a outra que fora cortada, protegendo-a. Por fim, fechou-se o pneu e encheu-se-o. Deu certo!

Ciclista Fabiano.

André, Nicolas e o ciclista de Araraquara improvisando um manchão. Foto: Ciclista Fabiano.

Seguimos pedalando nós quatro. Era muito bom não sentir as ondulações do pneu e da disposição das folhas nele. Enfim, era bom não ficar balançando para cima e para baixo com a bicicleta com pneus veganos.

Uma pessoa que passara por mim quando eu estava a pé avisara-me em qual das inúmeras saídas da Manutenção teríamos que subir para as rodovias. Dito e feito. Saímos ao final do último túnel da Imigrantes nova.

Lá, os carros saíam a cerca de 80km/h. Tínhamos acostamento, mas este desapareceria pouco à frente. Depois, ainda havia uma trifurcação: à direita, iríamos para Praia Grande, Mongaguá ou Itanhaém. No centro, o rumo era Cubatão, Guarujá e litoral  norte. À esquerda, Santos, São Vicente ou Praia Grande (de novo).

Fomos pela esquerda e, logo após a trifurcação, meu pneu furou – só para variar… Perguntando para os moradores, soubemos que ali perto havia uma bicicletaria. Fui para lá sozinho enquanto o André e o Nicolas foram para Santos. Eram 11h30.

Dirigi-me à bicicletaria. Passei por ruelas de areia e terra batida em meio a uma população de baixa renda.

A bicicletaria, na verdade, era um dono de bar. Em princípio, ele queria apenas trocar a câmara. Eu, já ciente de meu problema, insisti num pneu novo (os freios troquei depois). Ele mandou uma pessoa ir buscar lá em outra loja um modelo parecido com o meu. Eu aproveitei a sombra do bar de Cubatão. Refresquei-me por lá  e descansei (quase cochilei).

Gastei R$ 25,00 pelo pneu dianteiro e mais R$ 10,00 pela câmara. Vi depois que a câmara que me foi colocada não é a mais apropriada para o meu tipo de pneu (26×1.5), mas, mesmo após outras duas pedaladas até Santos, ela não me deu problemas.

Às 12h30, voltei à estrada. Iria para Santos antes de dormir na Praia Grande.

Saiba mais sobre a Bicicletada Interplanetária:

Cobertura completa do “Bicicleta na Rua”

(I) Interplanetária – O período precedente
(II) Interplanetária – Rodas a girar rumo ao litoral
(III) Interplanetária – As primeiras infrações da PMR e os bloqueios
(IV) Quantos ciclistas tinham, afinal?
(V) Interplanetária – Perseguição policial
(VI) Interplanetária – Ciclistas são impedidos de pedalarem até o litoral
(VII) Interplanetária – Policiais cumprem horas extras para bloquear descida de ciclistas ao litoral
(VIII) Interplanetária – Policiais ignoram leis
(IX) Interplanetária – Polícia Rodoviária gasta mais de R$16 500,00 impedindo ciclistas de irem ao litoral
(X) Interplanetária – Bares amigo e não amigo dos ciclistas
(XI) Interplanetária – Os primeiros a chegarem a Santos
(XII) Interplanetária – Bloqueio dos Caminhos do Mar
(XIII) Interplanetária – A Estrada da Xiboca
(XIV) Interplanetária – “Pequenos” problemas técnicos: o pneu vegano e a Estrada de Manutenção
(XV) Interplanetária – Santos, enfim!
(XVI) Interplanetária – Faltam bicicletários no Litoral Plaza Shopping
(XVII) Interplanetária – O retorno a São Paulo

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Bicicletada Interplanetária 2008

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